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10 de janeiro de 2013

A família Mentisóle

Capítulo I - A saída

A maca que levava a mãe de segunda viagem não era hospitalar. Semanas antes Rudolf havia ido até o quintal e montado, a partir de lascas aparentemente infrutuosas uma retangular tábua de madeira. Em seguida, dois lençóis se sobrepuseram para cobrir a maca e garantir certa higiene ao nascimento do pequeno Isaac, o cerne da revolução na casa da família Mentisóle.

O último parto naqueles moldes seria feito na primeira noite chuvosa em meses de aridez. Rudolf seguia com os conformes naturais a uma mulher que daria a luz em poucos minutos, mas que, até então, havia gritado incrivelmente menos que no nascimento de Temple. Ela pretendia segurar até o último instante o máximo que pudesse de seu brado. A disposição à revolta se manifestava de forma surpreendente e em um momento pouco saudável para a família. Mas para um grupo de pessoas que já passara por tanto e há tanto, saúde era raramente prioridade.

O pai esperava, no entanto, que ao menos nascimentos fossem saudáveis. E a rebeldia da mulher em reprimir seus gritos de dilatação, aos olhos de Rudolf, estragaria o fetal Isaac. Do chão da cozinha onde as primeiras dores se manifestaram - e levaram a mãe ao chão - até a cama, a maca improvisada de lascas de madeira e lençóis sobrepostos cumpriu com seu papel, muito graças à ajuda robusta de Temple.

Minutos silenciosos se passavam e a irritação do pai crescia visivelmente, porém sem afetar a coarctação da mãe, insistente no mais reprimido silêncio. Até Temple já havia notado o clima de tensão entre os dois e sabia que logo o inevitável ocorreria.

- Fale o que quer – balbuciou Rudolf, no limite de sua brutal paciência.

- Que seja livre.

Os olhos da mãe já lacrimejavam e nada que ele fizesse repreenderia aquela irritante emoção. Os últimos instantes haviam sido tão intensos que a espera pelas palavras mais importantes nunca antes pronunciadas pelo pai se tornara uma pausa no tempo. Para a mãe.

A chegada ao mais ermo dos lugares, há 17 anos, foi permeada pelo mais comum dos acontecimentos na família Mentisóle: o silêncio. Se palavras faltavam, por outro lado, as imagens ainda se faziam vivas e atordoantes na cabeça da mãe. O verde, crescendo da terra montanhosa; a vida. Ao mesmo tempo a solidão, presente na falta de vida de Rudolf. Se a possibilidade de se arrepender existisse, nada mudaria, seria pior ou seria melhor. Mas não havia contrição para aquela mudança. Era irreversível.

O nascimento de Temple, a mínima possibilidade de alteração naquele cotidiano aflitivo, aumentou a desgraça da mãe, que já tinha mais certeza da inércia de sua realidade que da própria mortalidade. Um castigo. Dar aquela mesma vida ao feto carregado por meses na barriga. O graveto, tantas vezes considerado como instrumento abortivo, agora vinha à memória como símbolo maior do arrependimento que se seguiu nos anos seguintes ao crescimento da criança.

Mesmo após a frustração com o primeiro bebê, a concepção de Isaac veio como o menor e ao mesmo tempo mais forte sinal de esperança para os filhos. Durante as dezenas de semanas que se seguiram ao crescimento da barriga, a mãe alinhava em sua mente ignorante maneiras de usar aquilo a seu favor. Anos haviam se passado desde o nascimento de Temple e absolutamente nada chegaria tão perto de uma alteração naquele modo de vida que outra criança. Este pensamento também era lugar-comum na primeira gestação, mas agora algo parecia diferente.

A mãe, durante a gravidez, matutava tanto uma forma de encarar o pai que chegava a doer a cabeça. Mesmo assim nada chegava perto de um enfrentamento altivo contra Rudolf. A situação de prenhez, na ideia da mãe, já não parecia tão útil quanto quando a imaginou como escapatória para a realidade da família. Porém seu instinto – mais autônomo que seu cérebro – tomou as rédeas da situação e afastou, na gestação de Isaac, o graveto, tão considerado quando Temple era feto.

Agora, os segundos tomados por Rudolf para responder ao maior desejo da vida da mãe, pedido após uma série de gritos reprimidos, já haviam se esvaído. Ela também já não refletia mais sobre seu passado e sua vida até ali. Atentava às palavras que ele estava prestes a cuspir.

- Será livre – sentenciou Rudolf.

Os gritos aumentaram de uma só vez e em menos de um minuto a mãe deu à luz Isaac. E a escuridão a si própria.

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