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8 de janeiro de 2015

72

Minha avó tem 72 anos e hoje fomos levá-la ao médico.

Feita a consulta, corremos almoçar num restaurante próximo. Enquanto comíamos, reparei que ela olhava com certa curiosidade para uma moça que havia acabado de entrar com uma daquelas cestinhas de bebê que se leva com as mãos. Como estava de costas, não dava pra ver o que tinha dentro. Vovó estava curiosa e não se furta já há alguns anos em falar na altura necessária para que seu aparelho de ouvido capte bem o som.

- Olha, ela está levando um cachorrinho, que bonitinho.

- Vó, não é um cachorrinho, deve ser um bebê.

Silêncio. Continuamos almoçando e alguns minutos depois a moça resolve ir embora. Passa por nós, mas com o pequeno berço do lado contrário ao da nossa mesa.

- Ei, moça, vem cá, deixa eu ver! Ouuun, que bonitinho, olha lá que lindo, menino... é um bebê. Muito lindo, moça. Tchau, gente, vão com Deus, viu!?

Com 72 anos a gente pode tudo.


Publicado originalmente aqui.

24 de dezembro de 2014

Indulto de Natal

Ficar nove horas aguardando seu ônibus na rodoviária numa antevéspera de Natal estimula a procura por meios para vencer o tédio. Talvez o mais antigo deles seja ouvir conversas alheias, tarefa a qual não me furto, curioso que sou.

Nesta terça-feira, 23, milhares de detentos foram beneficiados com o indulto de Natal e muitos estavam na Barra Funda para seguir viagem até seus familiares. Um grupo de quatro deles acabou se sentando nos bancos atrás de mim, no saguão em frente às bilheterias. Um tinha sapato que cobria os pés. Os outros três usavam chinelos de dedo.

Conversavam de tal forma que fui obrigado a pausar a música e, sorrateiramente ainda com o fone de ouvido, prestar atenção nas histórias.

Um deles não escondia a animação em poder rever a companheira (mulher, esposa, namorada ou amante). Comprou um cartão com 40 unidades e se esforçava para conseguir contatar a mulher, a fim de avisar que estava a caminho.

"Essa merda só dá indisponível", bateu o telefone público no gancho e chamou a atenção de todos ao redor, minha inclusive.

Quando conseguiu finalmente completar a ligação, não trocou duas palavras. "Amor, amor? Vou chegar 7h30 amor. Amor? Mas que merda".

Na tentativa seguinte foi mais feliz. Muito feliz. Sabe-se lá porque (por ansiedade, muito provavelmente) começaram a se atualizar das notícias ali mesmo e a decidir onde passariam o Natal. "Amor, você decide. Eu tô indo aí só pra te ver. Vou pra onde você quiser", sempre falando mais alto que o necessário, a não ser que fosse o necessário para que eu ouvisse. Nesse caso falava no tom ideal.

Gastou o primeiro cartão. Comprou outro. E outro. "Amor, eu já gastei três cartões com você, mas eu não consigo ficar sem ouvir a sua voz. Eu preciso te ouvir, amor". Cada cartão de 40 unidades custa R$ 7. Ele tinha, conforme disse na primeira ligação pra mulher, os R$ 200 enviados por ela, mas R$ 40 já tinham ido na van do presídio até à capital paulista. E agora R$ 21 nos cartões. Também ostentava um latão de Skol pra lá e pra cá, repartido com os outros três amigos.

Estavam em festa a bem da verdade.

As horas que antecederam a partida do ônibus deles devem ter sido as mais demoradas do ano. "Ah, já faltam 40 minutos? Não acredito. Daqui dez a gente desce pra embarcar, mano".

Nesses 10 um senhor baixinho, de bigode, com uma sacolinha da C&A e visivelmente desesperado entrou em cena. Ele não conseguia concluir uma ligação no telefone público e os quatros beneficiários do indulto, sentados ao lado, indicaram um pra ajudar o homem. "Vai lá ow, ajuda o tio, mano".

O tio, descobrimos todos depois, também estava de "saidinha", que é o termo usado por eles pro indulto. O tio, descobrimos também depois, estava numa situação de fato desesperadora.

Liberado do presídio de Avaré mais cedo, quando chegou em São Paulo e foi ate à casa da sua filha, descobriu que ela tinha se mudado. Sem o novo endereço nem algum contato de telefone, ele tentava avisar em Avaré da situação e que não conseguiria voltar hoje. Nem amanhã, nem no Natal. "A moça disse que só tem passagem pra lá dia 25 de janeiro". Respirava ofegante e estava sem saída. "Táxi até lá vai dar mil reais, eu não tenho. Não tenho quem me leve também. Vou ficar aqui na rodoviária até dia 05?" Dia 05 é quando eles precisam se reapresentar.

Um dos quatro primeiros detentos dissecava mais a história. "Mas o mano não avisou sua filha que tava vindo?". Ele disse que essa foi a primeira vez, em 13 anos, que havia sido beneficiado com o indulto e que a filha nunca tinha ido até Avaré fazer uma visita. "Queria chegar de surpresa mas ela se mudou".

O relógio marcava finalmente 1h. Os quatro deixaram o tio e desceram rumo à plataforma finalizando o latão de Skol e falando alto, num tom do nível da visivel felicidade deles.

Fiquei mais seis minutos, reparando na feição do tio. Era um desespero triste, uma tristeza desesperada. Quando eu pensava em alguma forma de ajudar, uma mulher que também deve ter ouvido tudo foi até ele e sugeriu que procurasse uma delegacia. Pode não ter sido a melhor ideia, mas não pude pensar em outras coisas.

Desci à plataforma. Os quatro e outros vários beneficiários do indulto se indignavam com o fato de àquela hora, 1h10, estar saindo o ônibus da 00h40. O deles era o da 1h30, assim como o meu.

Na linha seguinte, da 1h que acabou saindo às 2h, restaram alguns lugares e resolvi embarcar depois de nove horas na rodoviária.

Os quatro também tentaram, com o dono dos cartões telefônicos gastos com o "amor" como porta-voz.

- Ô motorista, não tem como a gente ir nesse dai também?

- Vocês estão em quantos?

- Quatro.

- Agora já embarcaram dois, cabem mais dois só. Querem dividir?

- Não, tudo bem, a gente espera o nosso.

- Ok.

- Feliz Natal, motorista.


Publicado originalmente aqui.

22 de dezembro de 2014

Parece futurístico mas é semana que vem

Era algum ano entre 2009 e 2011. Talvez 2010. Quase certo que 2010. Entrevista de emprego em forma de dinâmica de grupo para uma vaga bastante disputada de estágio em uma famosa emissora de TV. Ao passo em que os candidatos se ajeitavam, a responsável do recursos humanos ditava as regras da primeira etapa do processo. Ela chamaria um a um até sua mesa e faria apenas uma pergunta. No começo achei que seriam diferentes indagações; depois, no café do intervalo, descobri que todos respondemos ao mesmo questionamento.

Esperava algo relacionado ao jornalismo ou uma daquelas perguntas típicas de RH. Que bicho você seria? Um leão. Por quê? Porque ele é o rei da selva e eu tenho espírito empreendedor. Ok, obrigado. Próximo.

Mas não. Fui surpreendido.

Como você espera estar em 2015?

Quebrou minhas pernas, lógico. Não que eu não tivesse uma resposta espontânea na ponta da língua, mas qualquer coisa que saísse (e saiu) seria clichê e estúpida. Espero estar vivo. Trabalhando. Estável financeiramente. Ser reconhecido pelo meu trabalho. Espero não estar em dinâmicas de grupo respondendo a questões existenciais sobre pretensões para o futuro.

Me parecia tão distante (e é) imaginar como estaria eu e o mundo dali 4, 5 ou 6 anos. Pior, o ano de 2015, só ele, me soava como futurístico. Não só quando a moça repetiu uma vez mais a única questão do dia. Desde muito tempo o número me conecta ao futuro.

Em 2015 carros voarão, refeições virão em cápsulas e seremos capazes de ler obras literárias inteiras em segundos.

Em 2015 respiraremos com máscaras de oxigênio, nuvens de poeira tomarão os horizontes das metrópoles e haverá falta d’água. Haverá...

2015 ainda poderia muito bem ter sido, bem antes de 2015, claro, título de longa de ficção científica do Kubrick ou de filme-catástrofe (nesse, com direito a tragédia no roteiro e nas bilheterias, muito provavelmente).

Não bastasse essa profusão de hipóteses, agora, devido a um tal de calendário gregoriano, me peguei imaginando tudo isso que alguma vez passou pela minha cabeça ser 2015 bater assim, sorrateiramente, como quem não quer nada, à minha porta. Prometendo sem acontecer. Acontecendo sem prometer.

Sim, me parecia futurístico mas é semana que vem

E agora, o que fazer? O que pensar? Ou, como indagaria a robótica moça graduada em recursos humanos: o que esperar em 2015?

Era tão futurístico que desacreditei nele chegando ou em mim chegando nele.

A única programação que [não] fiz diz respeito à pilha de livros que me aguardou à míngua durante todo o ano: eu tinha a esperança de que em 2015 a devoraria em dois quartos de hora, por isso só fazia me poupar. É, quem sabe em alguns dias não legitimam o soar futurístico do ano e nos brindam com um Google Glass 2.0 de leitura ultrarrápida.

Fora isso, as demais ilusões de futuro ao que tudo indica ficarão, bem... Pro futuro. 2038 talvez.

Porque 2015 é agora.


Publicado originalmente aqui.

23 de setembro de 2014

Automático

Hoje, depois de um ano e meio morando nessa cidade, acabei pegando o metrô errado na volta pra casa.

Quando me dei conta, na estação seguinte a que eu embarquei, de que estava indo em sentido contrário fiquei, obviamente, com raiva. "Vou perder tempo, ter que voltar, puta que pariu", pensei. Devo ter expressado várias caras de frustração no trem.

Não bastasse isso, não consegui descer na estação seguinte. Muita gente entrando, uma moça com a perna engessada impedindo transversalmente o fluxo... A porta fechou. E eu fiquei para dentro. De novo. Do trem. No sentido contrário ao da minha casa. Às dez da noite. "Lerdo". As expressões faciais de raiva devem ter ficado fora do controle.

Aí, de repente, levantei a cabeça e uma senhora de óculos, com uma camiseta de candidato a deputado, uma bolsa grande (caberia por certo minha cara de tacho) e uma experiência de vida algumas dezenas de vezes maior que a minha sorria de canto de boca. Não pra mim. De mim. Das minhas reações.

Desarmado, não tive o que fazer: sorri de volta. E ri de mim.

21 de setembro de 2014

Emissário de segunda

Dormi sábado
Acordei domingo
Faltou justiça
À ordem de transposição dos dias

Às onze de ontem
Um aceno à felicidade
Às quatro de hoje
Não há luz que acenda essa cidade

O elo que por hoje liga a nuvem ao chão
E transforma o céu em imensa escuridão
Ajuda a entender porque a vida dominga
Pras bandas de cá molenga, capenga, sem ginga

Minguou o dia
Nascido desde sempre tocaiado
À espera de que algo o denomine
Que revolucione o pacato caminho do gado

Se sábado fosse
Que dia teria a sexta
Pior, que dia carregaria a pecha
De apenas anteceder

Seu mal é o amanhã
Que pra uns inspira, incentiva, angustia
Outros, então, entedia
Promessa, talvez, vazia


19 de setembro de 2014

Saudade

Saudade traz consigo solidão
Resultado de uma paixão que teima em ficar
Quando o adorado já não fica mais

Saudade é apego: a um passado que não passa
A um presente descontente
E um futuro inexistente

Saudosos forjam sentimentos: eles não existem mais
De ambos os lados, não

Quem tem saudade tem porque perdeu
Sofre para além dele
Mas a dor, essa é nele

Saudade não se deseja, se tem, se sofre, se supera
Não, saudade não se supera
Se diminui, exaspera, transfere

Saudade é, por fim, lembrança
Do cheiro
Do fungado
Da boca
Da pele
Do pensamento
Da vida sua, nossa

15 de setembro de 2014

A recondução da arte a lugares inusitados

Durante muito tempo os espaços aonde a arte se faz presente foram de certa forma delimitados e consagrados por aqueles que se interessam pelo assunto. Em sua maioria os museus, instituições privadas e sem fins lucrativos, acabaram se tornando o ponto de encontro natural de exposições, efêmeras ou mais duradouras, das mais variadas expressões artísticas. Esse cenário, porém, vem sofrendo certa mutação graças ao avanço da arte de rua, exposta em espaços públicos e, mais recentemente, à invasão criativa feita por variados artistas em locais privados, com destaque para o antigo Hospital Matarazzo, em São Paulo e para a Fábrica Bhering, no Rio de Janeiro.

Não se trata de tomadas itinerantes que perpassam vários lugares, dentre os citados acima. São exibições pensadas para esses lugares, cujas limitações físicas e arquitetônicas precisam se encaixar no projeto artístico do local.

Foi assim com o prédio de 1904, na altura do número 190 da Rua Rio Claro, próximo à Avenida Paulista, em São Paulo. Após 20 anos de silêncio, o antigo Hospital Umberto Primo – hoje Cidade Matarazzo – abriu suas portas para a efervescência artística de mais de 100 autores brasileiros e estrangeiros, que se dispuseram voluntariamente ao projeto.

“Há sete anos procuro um lugar como este. Queria um lugar onde todos na cidade pudessem se expressar. Isto que está aqui é um movimento, um processo dinâmico, porque tudo o que você vê aqui vai desaparecer”, detalha Alexandre Allard, idealizador da exposição.

O objetivo integrador do Cidade Matarazzo é fomentado também pelo curador, Marc Pottier. “Temos muitas obras que são como um diálogo com o espaço”, afirma. A tal comunicação se dá de maneira muito óbvia em certos momentos (como nos raios-x de duas colunas cervicais, fazendo clara alusão aos tempos remotos de consultório clínico do Matarazzo) e não tão clara em outros (a frase “Havia mais futuro no passado”, cravada em uma das paredes sujas do local é um convite à reflexão).

Se o Cidade Matarazzo contempla momentaneamente a arte de uma centena de criadores, a Fábrica Bhering, no Rio de Janeiro, é um espaço coletivo transformado definitivamente em point artístico. Há décadas atrás toneladas de chocolate e balas eram produzidas no local. Hoje, o inusitado novo uso que se dá aos cômodos dos seus 16 mil m² parece ter atingido seu ápice criativo e de interação: desde agosto os visitantes podem conferir os 80 ateliês do local todo primeiro sábado do mês, com direito a um café bastante aconchegante.

A Bhering já era conhecida entre os amantes desses espaços por fazer, esporadicamente, eventos abertos ao público. Esses momentos traziam os moradores de morros próximos ao Santo Cristo, local da antiga Fábrica, ao encontro da pintura, da arte plástica, cenografia, moda etc. As comunidades do Pinto e da Providência já são frequentadoras do local, contrariando certa lógica elitista da arte museológica, que por vezes não está acessível financeiramente ao morador do morro – ou não o deixa à vontade para frequentá-la.

A mostra do Cidade Matarazzo, que termina no próximo dia 12 de outubro, não parece ser o ponto final da revitalização. A intenção dos colaboradores é transformar o local num ponto definitivo e alternativo de confluência artística da cidade, assim como caminha para ser a Fábrica Bhering no Rio.

Ver a arte sendo reconduzida para tais espaços pouco convencionais de exposição gera a expectativa de vê-la atingindo cada vez mais quem não está habituado com tais criações – muitas vezes, por motivos que fogem ao simples desinteresse. A popularização da arte, pauta tão cobrada pelos movimentos sociais, pode estar justamente nessa invasão criativa de locais abandonados e que naturalmente são propícios para a montagem, exibição e consagração das mais variadas obras artísticas. 

MADE BY... FEITO POR BRASILEIROS
Onde? Cidade Matarazzo - al. Rio Claro, 190, Bela Vista, região central
Quando? De 9/9 a 12/10, terça a domingo, das 10h às 17h
Quanto? Gratuito

GALERIA BHERING
Onde? Endereço: Rua Orestes, 28 - Santo Cristo - Telefone: (21) 2223-2477
Quando? Todo primeiro sábado do mês.
Quanto? Gratuito

6 de setembro de 2014

Última frase com amor

Não há  mais o que se falar sobre amor
A não ser que
Falemos da empatia
Coirmã

Não há mais o que se falar da empatia
A não ser que
Falemos da saudade
Viúva

Não há mais o que se falar da saudade
A não ser que
Falemos da lembrança
Madrasta

Não há mais o que se falar da lembrança
A não ser que
Falemos da carência
Tia-avó

Dela, então
Põe tudo abaixo
Confunde, manipula, embaralha, desorienta
Engana as ideias
Por querer
Para se ver preenchida
Justificada
Concreta
Triunfante

Não há mais o que se falar da carência

30 de agosto de 2014

Estalo

Qual barulho produz um estalo
Que não aquele que se ouve
Quando os dedos brigam de galo
T R Á: dois dedos se batem, e vai um pra cada lado

Quanto tempo dura um estalo
Quando se tocam
E vai dedo pra cá dedo pra lá
Leva menos tempo que o tempo que se leva pra escrever tempo

O que fica depois de um estalo
Logo depois é o seguinte
Um dedo sobe
E o outro dedo: pá, desce

Quem é o responsável pelo estalo
Os dedos, a mão, o homem
O ar, que propaga
Isso mesmo, ninguém

Para quê um estalo
É rápido, torna atento, parece conveniente
Não é, vem do nada, destrói a barreira do silêncio
Mas ah, é eficiente

E porque é que um estalo machuca
Engano, o pobre não faz doer
É, rateia a culpa
Entre os dedos, a mão, o homem e o ar

Combinemos: não gosto
É tanto o que se perde num estalo
Gente, amores
Que eu penso: e se a gente fizer um abaixo-assinado contra o estalo?

23 de maio de 2014

Fotografias de uma realidade melancólica

Uma fotografia viva da realidade. Um homem sem corpo, cuja idade já transpassou a marca dos quarenta, com o rosto indiferente ao seu exterior: olhos fechados, boca cerrada e sobrancelhas e barba por fazer. Ao seu redor, uma multidão se aglomera no limite da faixa de segurança para, em sua maioria, apenas fotografar Ron Mueck, expresso nessa escultura, que toma o posto de mais impactante: “Mask II”.

Em exposição no Museu de Arte Moderna (MAM) até 1º de junho, no Rio de Janeiro, essa e outras obras hiper-realistas em tamanho gigante do artista australiano estão quebrando todas as expectativas. Até ontem (22), mais de 210 mil pessoas já haviam passado pelas nove esculturas nos pátios do MAM.

A grandiosidade e o realismo exacerbado visto em Ron Mueck ajudam a explicar o sucesso da exposição, consagrada também em outros países, como Austrália, Nova Zelândia e, recentemente, na Argentina. É possível sem nenhum esforço se ver na obra, como na figura de um casal de idosos, na praia, debaixo de um guarda-chuva – “Couple under an umbrella”.

Um dos curadores quando as esculturas estiveram na Nova Zelândia, Justin Paton explica o sentido metafórico da posição que o casal monta juntos. “Representa o desapego no sentido mais positivo do verbo ‘sustentar’: manter alguém com força, mantê-lo por toda a  vida, manter um momento de vida frente ao fluxo do tempo”, conta.

De fato a mulher com as mãos segurando o chão, atrás de suas costas, sentada de tal modo para que o homem apenas recoste sua cabeça sobre suas pernas é a representação dessa sustentação de que Paton trata. Já seria naturalmente encantador não fosse ainda o olhar que a sustentadora dá ao sustentado, sem obter deste reciprocidade. Ou o movimento de seus cabelos, captado como num obturador fotográfico, as veias saltantes e os dedos da mão inchados, os quais justificam ainda mais a ideia de fotografia máxima da realidade.

Como se estivéssemos depostos, sem autonomia alguma sobre nossa percepção, frente à obra que maximiza nós mesmos, pensamos a obra de Ron Mueck como um reflexo. Ou apenas fotografamos.
Surpreendem os flashs ininterruptos das câmeras digitais e dos smartphones. Chegam a incomodar se o visitante quer dedicar o tempo que seu bom senso permite ficar frente à obra apenas a contemplando.

Nesse sentido, a contemplação não está diametralmente ligada ao gigantismo dos corpos de Ron Mueck. Se as duas esculturas antes descritas impressionam também pelo tamanho agigantado, a contraposição de outras menores até que nosso tamanho real se mostra bastante eficiente. É como se alternássemos de uma visão maximizada de nós mesmos para outra pormenorizada, ambas com riqueza de detalhes.

A escala das obras, para alguns, porém, é o que menos importa. A melancolia em retratar rostos e corpos indiferentes aos visitantes, perenes em sua plenitude e serenos na catástrofe de suas existências é o que importaria do ponto de vista artístico.

De toda forma, é impossível se despir dos pudores da mente quando se está de frente de si mesmo, menor ou maior fisicamente, mas com semelhante apatia, injustificada, de sentimentos. As fotografias de Ron Mueck dialogam porque não com o pai da psicanálise, que justificava a melancolia em sua ausência de justificativas, seu luto sem perda. 

RON MUECK
Quando? De terça a sexta, das 12h às 18h; sábado e domingo, das 11h às 19h; até 1º/6
Onde? Museu de Arte Moderna do Rio, av. Infante Dom Henrique, 85, Rio, tel. (21) 3883-5600
Quanto? R$ 14