Como foi a aula, filho?
Ótima, pai. Hoje foram todos os 20 alunos da sala porque a professora
de história havia nos instigado sobre a explicação do 17 de junho, que
completa 30 anos agora. Ela disse que foi quando nosso País acordou e
começou a mudar para o que é hoje.
Ah, como eu me lembro desse dia! Mas o que ela disse, exatamente?
Ela nos apresentou um vídeo, no cinema da sala, com a passeata dos 100
mil no Rio de Janeiro. Os gritos, pedindo melhorias nas áreas de saúde,
transporte e educação, geraram um sentimento de espanto na sala, até que
ela pausou as imagens e nos contou que o cenário do Brasil em 2013 era
bem diferente. Parece que os hospitais públicos à época tinham
corredores inundados de gente à espera de atendimento médico ou de
leito. Parece que à época os ônibus eram lotados e o metrô ainda não
estava em todas as capitais, com dezenas de linhas e interligações. A
educação, você acredita, era sucateada... As salas se abarrotavam com
mais de uma centena de alunos, as escolas não tinham infraestrutura e, o
que mais me espantou, havia ensino privado. Imagina só, hoje em dia,
não há escola privada que sobreviva à concorrência desleal das públicas.
Ela ainda disse que os professores ganhavam menos que os deputados e
vereadores.
Ganhavam mesmo, filho. Não se imaginava em 2013 que
eles pudessem trabalhar por um salário mínimo. A professora contou que
esse ato foi a nível nacional?
Sim, falou da grande caminhada
pacífica em São Paulo, com mais de 65 mil nas ruas, e das manifestações
em Belo Horizonte, Porto Alegre, Belém... E ressaltou que este dia
entrou pra história porque, além de ter sido o princípio da mudança,
nunca antes, desde o impeachment do falecido Collor, havíamos nos unido
por uma causa nacional como nos unimos naquele dia 17 de junho. Ah, e
pai, a professora disse que se perguntássemos aos nossos pais, alguns
poderiam ter uma história ainda mais rica e vívida pra contar, que vocês
poderiam ter participado daqueles atos. Você foi às ruas naquele dia,
pai?
Fui, filho. Já havia participado de outros dois atos
naquele ano contra o estopim inicial do nosso levante, o aumento das
passagens de ônibus no transporte do Rio - e em várias outras cidades do
Brasil, como São Paulo. Ambos os protestos haviam levado milhares de
pessoas às ruas, sem ter alcançado, no entanto, a magnitude que o dia 17
de junho alcançaria. Logo que peguei o metrô para me encontrar com meus
amigos naquele dia, no centro da cidade, reparei em algumas pessoas de
branco nos vagões, com cartazes enrolados, guardados em suas mochilas e
suprimentos considerados indispensáveis às manifestações, como água,
máscaras e vinagre.
Vinagre, pai?
Sim, filho.
Passávamos o vinagre em uma camiseta e amarrávamos ao rosto. Ajudava a
respirar quando a bomba de gás lacrimogênio, hoje proibida nos
países-membros da ONU, era lançada em direção ao nosso grupo. Mas como
dizia, eu já via no metrô sinais de que boa parte da cidade estava a
caminho da Candelária, o ponto de encontro inicial do protesto. Fui com
um grupo de dezenas de pessoas da Faculdade Nacional de Direito, onde eu
estudava, e me lembro até hoje do momento em que, a alguns metros da
concentração, começamos a correr em direção aos manifestantes, como
forma de nos unirmos indistintamente a eles. A partir dai fizemos um
trajeto de alguns quilômetros. Em momento algum conseguimos ter a
dimensão do número de pessoas presentes no protesto, não conseguíamos
ver o fim da multidão tampouco imaginávamos que uma centena de milhares
ali se fazia presente e ouvida. E fomos verdadeiramente ouvidos, filho.
Nos dias que se seguiram ao dia 17 de junho, mídia e governo se
lembraram, graças às centenas de milhares de pessoas que saíram às ruas,
da força do povo, quando este clama em uníssono. Nossa reivindicação
inicial referente à revogação do aumento da passagem foi prontamente
atendida. Entretanto, já éramos incontrolavelmente grandes para que a
diminuição do passe do transporte público fosse o único resultado
concreto desses atos. Logo após a primeira conquista surgiram lideranças
apartidárias em cada estado. Essas se comunicavam de modo a tornar
nossa insurgência desarmada mais organizada, multilateral, plural e
legítima.
E funcionava em qualquer tipo de reivindicação, pai?
Sim. Algumas, nos meses seguintes, demandaram novas passeatas dos 100
mil, apenas para lembrar o poder público que o gigante, como chamávamos
figurativamente aquele levante, ainda estava acordado e que não mais
adormeceria. Claro que, com o passar dos anos, aprendemos a votar e os
protestos não eram mais desesperadoramente necessários.
Que
história incrível, pai. Enriqueceu ainda mais a História que aprendi em
sala. Mas sabe, fico cá pensando... Às vezes acho que deveria ter vivido
este começo de século, os anos 2010. Lutar pelo meu País, pelas causas
em que acredito... Acho que nunca viverei isso.
Antes do dia 17
de junho, em 2013, eu tinha vários amigos saudosistas dos levantes
populares da década de 90. Alguns se diziam fora de seu tempo, assim
como você ensaia afirmar. Queriam ter vivido os anos 60, 70, 80...
Tempos difíceis no Brasil. Por isso eu te estimulo a não se aquietar.
Não vivemos em pleno Estado de bem-estar social, você sabe. Procure algo
que não te satisfaça neste País, junte-se a um grupo, reclame e, se
julgar necessário, tome as ruas.
Pode ser. Mas hoje o povo está
muito acomodado com as mudanças conquistadas. Dificilmente rumaríamos
às ruas, tamanha a comodidade de nossas vidas.
Filho,
pensávamos de forma muito parecida em 2013, não acreditávamos no nosso
poder, estávamos acomodados até então. Portanto, meu maior conselho para
você é: não subestime nada. Não subestime o poder desordeiro e
inesperado da união. Não subestime o seu poder, como indivíduo, de sair
de casa em busca dos seus direitos – e, sobretudo, de conquista-los. Não
subestime sua capacidade de ser a transformação que você quer ver. E
acima de tudo, não subestime a possibilidade dessa transformação se
concretizar.
18 de junho de 2013
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