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24 de dezembro de 2014

Indulto de Natal

Ficar nove horas aguardando seu ônibus na rodoviária numa antevéspera de Natal estimula a procura por meios para vencer o tédio. Talvez o mais antigo deles seja ouvir conversas alheias, tarefa a qual não me furto, curioso que sou.

Nesta terça-feira, 23, milhares de detentos foram beneficiados com o indulto de Natal e muitos estavam na Barra Funda para seguir viagem até seus familiares. Um grupo de quatro deles acabou se sentando nos bancos atrás de mim, no saguão em frente às bilheterias. Um tinha sapato que cobria os pés. Os outros três usavam chinelos de dedo.

Conversavam de tal forma que fui obrigado a pausar a música e, sorrateiramente ainda com o fone de ouvido, prestar atenção nas histórias.

Um deles não escondia a animação em poder rever a companheira (mulher, esposa, namorada ou amante). Comprou um cartão com 40 unidades e se esforçava para conseguir contatar a mulher, a fim de avisar que estava a caminho.

"Essa merda só dá indisponível", bateu o telefone público no gancho e chamou a atenção de todos ao redor, minha inclusive.

Quando conseguiu finalmente completar a ligação, não trocou duas palavras. "Amor, amor? Vou chegar 7h30 amor. Amor? Mas que merda".

Na tentativa seguinte foi mais feliz. Muito feliz. Sabe-se lá porque (por ansiedade, muito provavelmente) começaram a se atualizar das notícias ali mesmo e a decidir onde passariam o Natal. "Amor, você decide. Eu tô indo aí só pra te ver. Vou pra onde você quiser", sempre falando mais alto que o necessário, a não ser que fosse o necessário para que eu ouvisse. Nesse caso falava no tom ideal.

Gastou o primeiro cartão. Comprou outro. E outro. "Amor, eu já gastei três cartões com você, mas eu não consigo ficar sem ouvir a sua voz. Eu preciso te ouvir, amor". Cada cartão de 40 unidades custa R$ 7. Ele tinha, conforme disse na primeira ligação pra mulher, os R$ 200 enviados por ela, mas R$ 40 já tinham ido na van do presídio até à capital paulista. E agora R$ 21 nos cartões. Também ostentava um latão de Skol pra lá e pra cá, repartido com os outros três amigos.

Estavam em festa a bem da verdade.

As horas que antecederam a partida do ônibus deles devem ter sido as mais demoradas do ano. "Ah, já faltam 40 minutos? Não acredito. Daqui dez a gente desce pra embarcar, mano".

Nesses 10 um senhor baixinho, de bigode, com uma sacolinha da C&A e visivelmente desesperado entrou em cena. Ele não conseguia concluir uma ligação no telefone público e os quatros beneficiários do indulto, sentados ao lado, indicaram um pra ajudar o homem. "Vai lá ow, ajuda o tio, mano".

O tio, descobrimos todos depois, também estava de "saidinha", que é o termo usado por eles pro indulto. O tio, descobrimos também depois, estava numa situação de fato desesperadora.

Liberado do presídio de Avaré mais cedo, quando chegou em São Paulo e foi ate à casa da sua filha, descobriu que ela tinha se mudado. Sem o novo endereço nem algum contato de telefone, ele tentava avisar em Avaré da situação e que não conseguiria voltar hoje. Nem amanhã, nem no Natal. "A moça disse que só tem passagem pra lá dia 25 de janeiro". Respirava ofegante e estava sem saída. "Táxi até lá vai dar mil reais, eu não tenho. Não tenho quem me leve também. Vou ficar aqui na rodoviária até dia 05?" Dia 05 é quando eles precisam se reapresentar.

Um dos quatro primeiros detentos dissecava mais a história. "Mas o mano não avisou sua filha que tava vindo?". Ele disse que essa foi a primeira vez, em 13 anos, que havia sido beneficiado com o indulto e que a filha nunca tinha ido até Avaré fazer uma visita. "Queria chegar de surpresa mas ela se mudou".

O relógio marcava finalmente 1h. Os quatro deixaram o tio e desceram rumo à plataforma finalizando o latão de Skol e falando alto, num tom do nível da visivel felicidade deles.

Fiquei mais seis minutos, reparando na feição do tio. Era um desespero triste, uma tristeza desesperada. Quando eu pensava em alguma forma de ajudar, uma mulher que também deve ter ouvido tudo foi até ele e sugeriu que procurasse uma delegacia. Pode não ter sido a melhor ideia, mas não pude pensar em outras coisas.

Desci à plataforma. Os quatro e outros vários beneficiários do indulto se indignavam com o fato de àquela hora, 1h10, estar saindo o ônibus da 00h40. O deles era o da 1h30, assim como o meu.

Na linha seguinte, da 1h que acabou saindo às 2h, restaram alguns lugares e resolvi embarcar depois de nove horas na rodoviária.

Os quatro também tentaram, com o dono dos cartões telefônicos gastos com o "amor" como porta-voz.

- Ô motorista, não tem como a gente ir nesse dai também?

- Vocês estão em quantos?

- Quatro.

- Agora já embarcaram dois, cabem mais dois só. Querem dividir?

- Não, tudo bem, a gente espera o nosso.

- Ok.

- Feliz Natal, motorista.


Publicado originalmente aqui.

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